night shift noun
(Cambridge Advanced Learner's Dictionary)
agora eu penso se o silêncio não seria apenas muito de nós mesmos. e essa seria exatamente a mesma conclusão da que cheguei no sonho.
“Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo salvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso tambem que não se deve temer seu relinchar: A gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez."
Clarice Lispector, Uma aprendizagem ou O livro dos Prazeres
it may seem that one is undergoing something temporary, but it could be that in this experience something about who we are is revealed, something that delineates the ties we have to others, that shows us that those ties constitute a sense of self, compose who we are, and that when we lose them, we lose our composure in some fundamental sense: we do not know who we are or what to do… let’s face it. we’re undone by each other. and if we’re not, we’re missing something… one does not always stay intact. it may be that one wants to, or does, but it may also be that despite one’s best efforts, one is undone, in the face of the other, by the touch, by the scent, by the feel, by the prospect of the touch, by the memory of the feel… ways of being for another or, indeed, by virtue of another.
(freely inspired in j. butler)
o dia começou como a repetiçao dos anteriores. o despertador tocando e eu não conseguindo sair da cama em um horário compatível com aquilo que se convencionou chamar de manhã. a manhã não tinha nada para me dar e vivê-la de outra forma que não fosse na cama aquecida com o calor do meu próprio corpo simplesmente não me pareceu atraente. não compensaria o esforço de abadonar o casulo. além do mais, meu quarto está sempre gelado pela manhã e colocar o meu corpo para fora das cobertas era uma auto-violência, que, ao longo do diálogo que eu silenciosamente travava com o snoozer do despertador, me pareceu irracional. eu vivia a falta de luz como uma planta que não encontra estímulo para exercitar seu fototropismo. eu simplesmente não era atraída por nada.
por isso eu desliguei o relógio e acordei novamente apenas três horas depois, já com uma espécie de nostalgia de mim mesma. quando vc mergulha fundo na própria escuridão, há sempre o risco de demorar para encontrar o caminho de volta. pela manhã, meus olhos só vêm vultos. às vezes pequenas bolas brancas que dançam de um lado para o outro. às vezes linhas coloridas que flutuam como nuvens. lavar o rosto com água quente pode ajudar os olhos a distinguir o que é real do que é irreal. aos poucos. mas não terá nenhum efeito sobre o mutismo dos cafés da manhã solitários. ou sobre a efemera constatação de que meus diálogos internos estão girando em falso e não há quem os queira ouvir. encontrar de novo um trilho para eles talvez seja algo dificil de se fazer quando a água chega ao pescoço e apenas a pontinha dos pés pode tocar o fundo. não sei se já é hora de precisar de um salva-vidas. ou é só a subjetividade precisando ouvir a própria voz para acreditar que pode nadar. eu me senti melhor depois das duas xicaras de café quente, enquanto ouvia as notícias sobre a previsão do tempo e a privatização do sistema de transporte público alemão. a vida real tentando penetrar pelos meus ouvidos. por um segundo, sair imediatamente para a biblioteca me pareceu um bom plano para o dia. mas logo depois me sentia tão esgotada quanto os ingressos que não conseguimos comprar. e tão sozinha como a ultima poltrona disponível para a sessão do dia catorze. depois eu simplesmente deixei de prestar atenção. o fim do estado de bem-estar social me preocupava menos do que os quilos a mais que o inverno está me fazendo ganhar. esse seria um dia mais triste que os anteriores.
uma espécie de anjo exterminador me fez postergar o caminho da rua. eu fiquei horas sentada no computador, me ocupando de tarefas desimportantes e ouvindo a neve derreter e derrubar pedaços de gelo na calçada interditada. me senti protegida por ver isso pelo lado de dentro da janela dupla. de acordo com o relógio eu talvez tenha passado uma ou duas horas assim, mas para mim eram centenas delas. tempo suficiente para que o envelhecimento se fizesse notar. eu fui repetidamente refazendo meus planos para o dia. um a um, eles foram se mostrando sucessivamente inviáveis. as possibilidades me oprimiam. por falta de decisão, eu cheguei até a consultar o horóscopo, mas suas previsões apenas me cansaram. a liberdade quando não exercida é um peso. só quando comecei a ouvir o barulho forte dos macacos nas jaulas do andar de cima é que eu supus que um pouco de ar fresco pudesse me fazer sentir novamente como se eu de fato tivesse alguma autonomia na condução do meu dia. alimentar essa ficção era exercer o resto de misticismo que me sobrou.
eu parei quando o farol de pedestres estava vermelho, ainda que não pudesse avistar nenhum carro se aproximando em nenhuma das direções. o tram que ia para a schwarzkopfstrasse estava parado no ponto e parecia desligado. havia aparentemente condições objetivas de segurança para eu atravessar a rua, mas eu simplesmente não queria ser responsável por essa decisão. queria apenas me jogar confortavelmente no reino das expectativas normativas, esperar o sinal verde e atravessar sem olhar para o lado. eu estava confortável dentro do meu casaco, do meu cachecol grosso e da minha música e deixei que apenas as minhas pernas ficassem responsáveis por reagir ao movimento da rua . quando eu terminei de andar e cheguei à calçada do outro lado, me senti como uma lua vazia. eu procurei a cabine de fotos de que vc fala, só para ver como seria tirar uma foto de uma lua vazia. depois eu pensei que teria direito a cinco poses e seria um desperdicio usá-las justo no dia em que não eram possíveis variações. eu cheguei na praça do teatro e seu espaço vazio era um lugar para o encontro de correntes de vento frio vindas de todas as direções. pela primeira vez no dia, eu chorei. e o vento frio congelava as lágrimas penduradas no meu rosto. elas doíam como cortes na pele feitos pela borda afiada de uma folha de papel em branco. eles são bem finos, imperceptíveis a olho nu, por isso demoramos para identificar as causas da dor. uma dor fina e delicada, bastante suportável. não havia um grito.
da praça do teatro, saem várias ruas e eu podia tomar qualquer uma delas. quando eu tentei pensar em algo, só me vieram lembranças. imagens misturadas das vezes em que passei por aqui. eu resolvi ficar só com uma delas, a mais antiga. por isso, resolvi pegar a rua em que havia a pequena quitanda chinesa onde eu parei para comprar maçãs verdes naquela tarde de primavera. o dia em que eu encontrei esse teatro por acaso enquanto andava de bicicleta pela cidade e parei para comer maças verdes na grama dessa praça que hj está coberta por meio metro de neve. a venda chinesa me pareceu mais triste do que da primeira vez. não há produtos coloridos expostos na calçada. não havia ninguém comprando folhas verdes para a salada fresca do jantar. eu não tive vontade de comprar maçãs verdes. todos os clientes da quitanda chinesa pareciam estar agora na livraria que fica do outro lado da rua. eu entrei ali para tentar esquentar um pouco o corpo e pensei em quantas pessoas que olhavam atentamente os livros não teriam sido atraídas pelo mesmo propósito. eu tinha certeza de que compartilhava o mesmo hálibi com alguma das companhias anônimas daquele lugar. as horas na livraria folheando o que viesse a minha frente acalmaram de alguma forma o sofrimento das coisas ausentes. os fanzines em impressões de baixa qualidade me fizeram sentir acompanhada. me deu um senso de concretude para a palavra viabilidade. quantas pessoas no mundo não estariam sentindo o mesmo tipo de angústia? a vontade de falar algo que está além dos meios de expressão que estão a minha disposição. a insuficiência das palavras. a somatizaçao do silencio e do cansaço no próprio corpo. no canto da estante, um livro sobre a condição do artista na sociedade pós-fordista. eu sequer abri para ver o índice, porque ele não falaria nada para mim.
a paralisia é um tipo de proteção natural contra o horror. às vezes você tenta se descobrir e acha que é possível distinguir o que é você mesmo e o que não é. mas chega uma hora que enxerga uma massa cinzenta de coisas em que já não é possível diferenciar o que é seu e o que é externo. o que sai da sua boca não é vc mesma. mas também é. a vida que vc leva não é a vida dos seus desejos. mas também é. às vezes seus atos são automáticos, porque vc apenas segue as placas, as regras e os caminhos já traçados. vc é obrigado a viver em um mundo pronto, que já existe e está cheio de coisas, de prédios e de pessoas. vc se move e esbarra em desejos alheios que vão machucando e fazendo pequenas lascas no seu próprio desejo. vc é obrigado a responder sempre pelo mesmo nome, quando queria poder responder apenas “eu”, seja lá o que essa palavra queira dizer a cada vez que vc a pronuncia. tem sempre os dias em que vc já não reconhece mais a própria voz e não entende mais o que te escrevem nos emails que recebe. esse é o dia em que percebe que encontrar o eu é destruir o eu.
mas você ainda pode sobreviver a esse dia se decidir se abandonar completamente no outro. decidir segui-los pelo passeio na neve. pelos caminhos que você não escolhe. ouvindo a música que vc não escolhe. entrando em lugares que você não escolhe. vc vai aos poucos percebendo que está viva quando eles olham para trás para ver se vc está ainda acompanhando o ritmo. de repente vc percebe que pode desviar dos caminhos traçados nas calçadas e andar pela neve fofa, inaugurando um percurso novo só para sentir o prazer de largar o peso do pé na neve virgem. tudo aquilo que vc estava procurando é só um corpo vulnerável à dor e ao prazer. e se vc permanecer nele, ele pode te transportar para além de vc mesma. vc finalmente percebe que pode viver fora de vc mesma. e que isso é muito bom.
apenas desconhecidos ou cúmplices são capazes de dividir companhias silenciosas. e quando isso acontece com os ultimos é como se as nossas respirações conversassem e a energia dos nossos pensamentos abrisse uma fenda no ar formando uma bolha onde podemos habitar sozinhos. foi aí que passamos a tarde de domingo, sentados nas poltronas escondidas do café francês. foi também dividindo o silencio que passamos a segunda-feira na biblioteca. é bem capaz que nos ultimos dias tenhamos falado menos por palavras do que por silêncios. e escrevemos sobre ele para podermos viver sua calma mais uma vez. lembrar que esse lugar existe quando a respiração ficar ofegante ou a voz falhar. ontem antes de dormir o livro que eu lia também falava de nós - “o silêncio absoluto era poderoso demais quando a pessoa se entrega a ele por um instante, seu encantamento difícil demais de desmanchar”. de novo a nossa vida sendo vivida ao som de ecos sintéticos. eu apertei os olhos para tentar encontrar o brilho da lua, mas o céu estava escondido por uma cobertura marrom. havia apenas o silêncio abafado pela neve. não foi difícil adormecer.
Segunda-feira. Não confie nesse dia. Não confie na segurança aparente da rotina pedindo para nascer. Ela não poderá te ajudar. Ela não te dará garantias. A rotina dá indicações de caminhos que nem sempre te levam para onde vc quer ir. O seu corpo já sabe o caminho para sair do labirinto, é só vc deixá-lo agir. Ou esperar querer sair. Não ceda aos caprichos desse dia intolerante a dúvidas e hesitações. Deixe que seus olhos se abram lentamente e levem o tempo que for para desincharem da cerveja de ontem. Não é preciso esquecer que estivemos bem perto da morte na noite de ontem. Não acredite se te disserem que devemos tirar o cheiro de cigarro dos nossos casacos para sermos aceito pela manhã. Não deixe que o peso virtual da semana dobre o seu corpo de fora para dentro e esconda novamente o seu coração. Coma a sobremesa no café da manhã e saia para caminhar pela cidade e ver os cavalos soltos cruzando as ruas, os cachorros almoçando nas padarias e a areia de praia cobrindo a calçada. O dia simplesmente tem que chegar e acontecer. Sem avisos. Deixe para entendê-lo só no final. Pode acontecer de vc descobrir que virou um anjo e que pode voar. Sometimes it just turns out that way.
Anmut schenkt Zufriedenheit
beauty presents satisfaction
grace gives
charm donates
elegance endows
amenity presents
sweetness gives
comeliness donates
goodliness endows happiness
gracefulness presents
loveliness donates happiness.
despertei do meu sono pesado com o ruído abafado dos passos subindo a escada. a chave na fechadura fazia o mesmo barulho da colher que mexia seu chá à noite antes de dormir, quando a sorte nos dizia que a doçura nos presentearia com contentamento. meus olhos se abriram como se estivessem esperando ver. a manhã escura me fez duvidar que estivesse olhando para dentro de mim e o frio que a parede exalava deixou claro que o sonho quente que ainda está enroscado no meu cabelo é só meu. meu amor dentro dos tímpanos e eu despedindo-me da possibilidade de voltar a sonhar. uma nuvem branca de neve e vento bateu na janela com uma violência deselegante. e eu cogitei ser um vento de sal. os cachorros e as crianças ainda não acordaram, mas tecnicamente essa não é mais uma hora para insônia. o império da noite se desfez e não há mais silêncio. um dia que começa lentamente, assim como o ano. enquanto estamos todos tentando ganhar tempo. a diferença entre alguma coisa e nada é nada. e isso é a mesma coisa que dizer que não há certo ou errado. mas ainda precisamos de tempo para viver sem temor os desejos do momento. talvez seja só o tempo de entender que prazeres e sofrimentos dispensam explicações. só o tempo de entender que dentro dos gemidos e dos gritos há um querer do outro que é o outro e um querer do outro que não é o outro. e isso é tão natural quanto o som que brota das paredes e escorre até desaparecer no carpete do chão do meu quarto gelado. agora é tecnicamente uma tarde de sábado e a tempestade de sal que cobria o deserto acaba de acabar. eu vou sair na rua atrás de um café com leite quente. atrás do gosto doce da tempestade quando acaba.
"Joy appears now in the little things. The big themes remain tragic but a leaf fluttered in through the window this morning, as if supported by the rays of the sun, a bird settled on the fire escape, joy in the taste of coffee - joy accompanied me as I walked to the press. The secret of joy is the mastery of pain."
Anaïs Nin
São nossas costas as que mais suportam o frio nesses dias de inverno. Quando se torna difícil demais, aperto o peito contra ele mesmo e estico as costas. Todos os movimentos tendem a lembrar uma concha e é muito complicado não aceitar, simplesmente, se recolher. Viemos para a cidade em uma época do ano em que recolher é palavra de ordem para permanecer vivo. Os nativos sabem que, em dias assim, as doenças estão por todas as partes então é sempre melhor ficar em casa. nossas costas são o exemplo mais físico sobre essa necessidade de encapsular-se. Proteger-se em um pequeno cocoon é só um outro jeito para subverter a lógica pré-estabelecida de uma viagem. Você acredita que seja coincidência nós dois termos trazidos, em discos diferentes, as mesmas letras de musica? Você acha que nossos vinis repousando ao lado dessa vitrola não são um jeito de protegermo-nos do mundo? Os discos, quando tocam apenas para nos lembrar de quem um dia fomos, são nossas costas curvadas, nos protegendo do frio. não foi à toa que sua câmera quebrou. Você também precisou de um tempo para ser só você. Destroy your billiant career – às vezes você é só o cara que sente as coisas com mais intensidade, talvez vez por isso você seja sempre o primeiro a saber a hora certa de parar. Você não foi o único a se surpreender com a simples constatação de que certo e errado não existem pq suas variáveis dependem unicamente de um ponto de vista para existirem. É tudo sobre aumentar as costas. Curvar o peito para dentro dele mesmo por tempo demais pode nos deixar sem saída quando o medo bater. No inverno é sempre mais perigoso perder-se dentro de si mesmo e não ter para onde escapar. Se viemos até aqui, foi só para que conseguíssemos eleger o verão, a estação máxima de nossos personagens.
tem sempre um momento do dia em que vc atinge o estágio máximo de descontentamento. vc nunca sabe bem quando ele acontece, nem qual o limite diário de tristeza vc terá de suportar. há dias melhores que outros. depende sempre da conjugação de muitos fatores. do seu relógio biológico. do quanto dormiu. do funcionamento do aquecimento. da quantidade de carboidrato que ingeriu. das músicas que apareceram no shuffle do seu ipod. de quão umidos estão os seus pés e quão congelados ficaram os seus dedos no percurso da casa até o café mais próximo. da quantidade de luz que conseguiu atravessar a camada espessa de gelo que cobre nossas cabeças, mas principalmente de quanto tempo vc permaneceu invisível.